O exercício da Medicina é permeado de conflitos e soluções onde a doença deve ser o único elemento do outro lado da trincheira. Os conflitos do nosso lado devem ser equacionados com inteligência e justiça, objetivando o bem estar de nossos pacientes.

Em outubro de 1853 os turcos declararam guerra aos russos, recebendo o apoio da Grã-Bretanha e França no conflito travado na península da Crimeia. Durante esse conflito, a enfermeira Florence Nightingale destacou-se pela sua atuação na criação de critérios de vigilância aos soldados britânicos gravemente feridos, reduzindo o índice de mortalidade. Acredita-se que esta tenha sido a primeira observação que demonstrou o impacto de uma maior vigilância nos cuidados aos pacientes críticos. Um século depois, o médico anestesista Peter Safar criou a técnica de reanimação cardiopulmonar com a ventilação artificial através da respiração boca a boca e massagem cardíaca externa. Na mesma época surgiram os aparelhos de ventilação mecânica que, associado ao conceito de vigilância, possibilitaram uma melhor assistência aos pacientes em situação clínica grave, dando origem às Unidades de Terapia Intensiva (UTI). Avanços tecnológicos foram incorporados ao longo dos últimos 70 anos, aperfeiçoando as condutas e proporcionando maior segurança para os pacientes e profissionais envolvidos nesses cuidados. A UTI é o ambiente onde se mantem a estabilidade vital do indivíduo enquanto ele se recupera da causa que o levou a situação crítica. Sua criação representou um marco na história da medicina ao reduzir a mortalidade em até 70%. O tempo de espera para acessar o leito de UTI agrava o prognóstico, aumenta a permanência hospitalar e os custos da assistência.

O conflito citado no título não se refere à guerra da Crimeia e sim à relação conflituosa entre os que necessitam de assistência digna à saúde e aqueles que deveriam promovê-la. O conflito pessoal dos médicos que, por dever de ofício, são testemunhas dos péssimos resultados devido à falta de condições de trabalho e de leitos de UTI para acomodar seus pacientes. Para John Rawls, filósofo americano, fiel à tradição liberal e estudioso dos conceitos de Justiça, a solução para uma sociedade promissora é um contrato social justo entre Estado e os indivíduos. O Conselho Regional de Medicina do Rio Grande do Norte (CREMERN) faz parte de uma autarquia federal mantida pelos médicos, tendo como atribuições legais a fiscalização e regulamentação do exercício profissional. Portanto, constitui um importante instrumento institucional de prestação de serviço à sociedade por parte do coletivo médico. O maior desafio da instituição é transformar relatórios de fiscalização em benefícios para a prática médica e assistência à saúde da população. Baseado nesses princípios, o CREMERN ajuizou ação civil pública contra o Estado por ampliação de leitos de UTI no ano de 2012, com início da sua fase de execução em 2017. Relatórios de fiscalização comprovavam a necessidade dessa ampliação por revelar a presença constante de pacientes aguardando leitos de UTI em salas de emergência, mal acomodados e sendo tratados de forma inadequada para suas necessidades. Trata-se de uma demanda estruturante para a saúde do Estado e que contou com a compreensão e sensibilidade do Poder Judiciário. O Conselho Nacional de Justiça conceitua a mediação como uma forma de solução de conflitos na qual uma terceira pessoa, neutra e imparcial, facilita o diálogo entre as partes, para que elas construam, com autonomia e solidariedade, a melhor solução para o conflito. Na presente mediação, a terceira pessoa é a Justiça Federal do Rio Grande do Norte que vem cumprindo com louvor o seu papel, não apenas mediando como também adotando as medidas necessárias para o bom andamento da ação. Até o momento foram incorporados 180 (cento e oitenta) novos leitos de UTI, contemplando as diversas regiões, tendo permitido que o estado do Rio Grande do Norte iniciasse a pandemia de COVID-19 com 135 (cento e trinta e cinco) novos leitos em pleno funcionamento. É incalculável o benefício alcançado por inúmeros pacientes que tiveram suas vidas e saúde preservadas pela oportunidade de acesso a esses leitos. É provável que boa parte da sociedade desconheça esses feitos e resultados. Uma experiência que ainda não finalizou e que se caracteriza pelo pioneirismo em todo país. Somos capazes de atingir objetivos nobres quando as instituições e pessoas se utilizam dos princípios da sensatez, razoabilidade, proporcionalidade, resiliência e compromisso. Mérito para a Medicina, para a Justiça e para os demais envolvidos. Benefícios para a sociedade potiguar.

 

Marcos Lima de Freitas

Médico, ex-presidente do CREMERN e Conselheiro Federal do CFM

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