Uma discussão quente marcou o I Fórum de Dilemas Éticos 2009, tendo como tema “Testemunhas de Jeová: a inviolabilidade à liberdade de consciência e crença é absoluta?”. A controvérsia gerada em torno de uma abordagem cirúrgica que evita a transfusão de sangue levantou questionamentos apaixonados sobre o rigor científico desta prática. A polêmica iniciou com a apresentação do cirurgião torácico baiano Romilton Viana Machado (fiel aos preceitos das Testemunhas de Jeová), que falou sobre a necessidade de se rever alguns conceitos médicos, como a determinação dos níveis de hemoglobina (Hb) determinantes para que um paciente faça uma transfusão sanguínea. Machado considerou que o nível de Hb em de 7 a 9 g/dL é suficiente em pacientes críticos e que a Hb muito baixa (maiores que 5 g/DL) são toleradas em pacientes não submetidos a stress ou previamente saudáveis e citou que o limite mínimo não é conhecido. O cirurgião torácico ainda declarou que alguns “mitos” sobre o sangue estão derrubados, como o que ele é sempre seguro, acelera a cura, o paciente vai para casa mais cedo, e que o líquido não custa caro. O médico apresentou um método utilizado por ele e uma equipe de mais 85 profissionais (dos quais ele disse ser o único Testemunha de Jeová) chamado “Recuperação Intra-operatória de Células”. Em uma máquina (Cell Saver), filtra-se o sangue, além de citrado, filtrado, lavado e devolvido ao paciente. Falou que a “eficiência e a qualidade” do processo dependem da habilidade do operador . E a contaminação por líquido amniótico, células malignas ou bactérias é uma contra-indicação “relativa”. Fazendo uma eloqüente e apaixonada do uso da razão, o pneumologista e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Munir Massud, criticou o método apresentado por Machado. Falou que, “por mais que a intenção tenha sido boa” no uso do Cell Saver, a prática carecia de rigor científico e não poderia ser adotada ou indicada em larga escala. “Faltam estatísticas e mais detalhes para que a prática possa ser aceita como um procedimento reconhecido cientificamente”. Antes das apresentações de Machado e Massud, o cardiologista catarinense Roberto Luiz d’Ávila falou sobre a tensão entre o benefício que o médico pode promover ao paciente e a autonomia deste para decidir se deseja ou não ser submetido a determinado tratamento. Ele lembrou da evolução do relacionamento entre médico e paciente referindo-se ao antigo Código de Moral e Ética Médica , de 1929, onde estava expresso que “a ética médica tem por fulcro o saber médico, sendo o paciente mero espectador”. O mesmo documento indicava que os enfermos não deveriam “fatigar” o médico com circunstâncias e fatos “não relacionados com a afecção” e deveriam responder estritamente às questões dirigidas pelo especialista, ou seja, uma relação de mão única, onde a interatividade era mínima e o paciente era totalmente submisso ao médico. Ao contrário do modelo de relação expresso pelo antigo código, d’Ávila afirmou que o caminho hoje é a consideração do paciente como um ser biológico, biográfico e simbólico. Citando o Belmont Report, declarou que os preceitos da beneficiência são “não causar danos, maximizar benefícios e minimizar riscos”. Já a autonomia foi conceituada como a “condição de uma pessoa ou de uma coletividade capaz de determinar, por ela mesma e com base de valores e convicções, a lei a qual se submeter”. Também defendeu que as pessoas deveriam ser tratadas com autonomia e aqueles cuja autonomia esteja diminuída devem ser protegidos. E citou a Constituição Federal , observando que a relação médico paciente deve ser pautada no prisma constitucional da dignidade da pessoa humana , “origem e fundamento dos deveres do médico”. O procurador do Estado, Miguel Josino Neto, declarou-se um “autonomista”, respeitando a liberdade de escolha do paciente, porém , deveriam ser observados os casos em que há falta de discernimento, o caso das pessoas consideradas pela lei como “relativamente incapazes”. Ele ressaltou que inexiste uma verdade incontestável e que a questão deveria ser analisada sem preconceito (análise da questão jurídica, não a religiosa). Josino amparou a sua apresentação no pensamento do filósofo John Stuart Mill, cuja obra “Ensaio sobre a liberdade” defende a soberania do ser humano sobre si mesmo, seu corpo e sua mente e também lembrou do artigo 5° da Constituição Federal , que expressa a liberdade de crença e de consciência como um direito fundamental. (Renato Lisboa)
I FÓRUM DE DILEMAS ÉTICOS CAUSA POLÊMICA
20/03/2009 | 03:00