As projeções para o financiamento do Sistema Único de Saúde (SUS) não são nada promissoras na avaliação do economista e professor doutor livre docente de Economia da Saúde da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP/USP), Àquilas Mendes. De forma concreta, diz ele, o Ministério da Saúde conta em 2015 com um orçamento inferior ao de 2014; as transferências de recursos aos estados e municípios serão reduzidas; e as emendas parlamentares voltadas para a saúde permanecerão congeladas. Em entrevista concedida ao Jornal Medicina, Mendes expõe de maneira objetiva o atual cenário econômico que aflige a saúde pública no Brasil.

Doutor em Ciências Econômicas pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), atualmente Mendes também é professor doutor do Departamento de Economia e do Programa de Pós-Graduação em Economia Política da Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP). Foi presidente da Associação Brasileira de Economia da Saúde e é colaborador permanente da coluna Domingueira da Saúde, do Instituto de Direito Sanitário Aplicado (Idisa).

Autor de vários livros e artigos sobre economia da saúde, financiamento da saúde e gestão orçamentária e financeira das políticas públicas, Mendes defende uma mudança da política econômica que, em cumprimento ao superávit primário, prioriza o pagamento de juros da dívida pública em detrimento às políticas sociais. “Infelizmente, falta compromisso por parte do governo federal com a população brasileira“, lamenta.

Confira a seguir a íntegra da entrevista do Jornal Medicina com Àquilas Mendes:

O professor da PUC-SP Áquilas Mendes defende mudanças na política econômica

O professor da PUC-SP Áquilas Mendes defende mudanças na política econômica

Jornal Medicina: A partir da estimativa do gasto público com saúde em 2014 e do corte de R$ 12 bilhões no orçamento do Ministério da Saúde em 2015, o senhor acredita a participação da União no financiamento público pode cair ainda mais neste ano? Isto é, cair dos 40,4% apontados no seu relatório para o Idisa?

Àquilas Mendes: No relatório do Idisa comentamos a participação do gasto federal em relação ao total do gasto público. Certamente, a participação da União no total desse gasto deve reduzir um pouco com o ajuste fiscal. Mas, não podemos esquecer que, de acordo com o nosso sistema tributário, a União é o ente que mais arrecada e, portanto, essa participação não deve cair substancialmente. Os municípios, seguidos dos Estados, vêm ampliando sua participação no total do gasto público, especialmente a partir dos anos 2000 com o estabelecimento da Emenda Constitucional 29 (vinculação de recursos). Realmente, esses entes encontram-se no limite de suas aplicações, apesar de disporem de receitas bem inferiores à União. Para uma alteração dessa situação seria necessária uma reforma tributária que dotasse os municípios e estados com maior capacidade arrecadatória e diminuir essa capacidade da União. Contudo, enquanto isso não é feito, o financiamento federal é fundamental e sua redução prejudica o financiamento do SUS como um todo.

JM: E o que dizer desse ajuste fiscal?

AM: Bem, com o ajuste fiscal, temos que analisar objetivamente os números. O Ministério da Saúde executou, em 2014, R$ 91,9 bilhões (dados do Sistema de Informações sobre Orçamentos Públicos em Saúde – SIOPS), sendo que a Lei Orçamentária Anual (LOA) determinava R$ 100 bilhões. Portanto, foram efetivamente gastos R$ 8,1 bilhões a menos. Isso é o que interessa para toda a população brasileira. Já em 2015, a LOA aprovada foi de R$ 103,3 bilhões, isto é, R$ 3,3 bilhões a mais que o ano anterior. Porém, com o corte do ajuste fiscal, passou-se a um orçamento de R$ 91,5 bilhões, sendo R$ 11,8 bilhões a menos do que foi planejado do ponto de vista orçamentário. De forma concreta, o Ministério da Saúde contará, nesse ano, com um orçamento inferior ao ano de 2014.

JM: O que isso significa?

AM: Ora, parece claro que a saúde dos brasileiros ficará bem mais prejudicada, quando se compara com a situação da saúde no ano passado. Não podemos admitir o discurso do que nada será alterado, à medida que os números são claros e objetivos. Lamentamos que governo federal, mais uma vez, insista em contribuir ao desmonte do nosso importante direito universal à saúde.

JM: Em seu artigo o senhor diz que, como as transferências para Estados e Municípios representam mais de dois terços do orçamento do Ministério da Saúde, o corte de recursos agravará a situação de asfixia financeira. Poderia explanar um pouco mais sobre como esse corte pode prejudicá-los e, consequentemente, a população brasileira?

AM: Com o corte do ajuste fiscal, o Ministério da Saúde reduzirá transferências aos estados e municípios no que se refere a incentivos financeiros que integram os blocos de financiamento da atenção básica, da média e alta complexidade, da vigilância em saúde e da assistência farmacêutica. Isso porque esses incentivos respondem a projetos específicos que, principalmente, os municípios, enviam ao Ministério. De forma geral, o ajuste fiscal afetará de forma considerada os investimentos fundamentais para a ampliação imediata de serviços ambulatoriais e hospitalares e prejudicará a implantação das Redes de Atenção à Saúde em todas as regiões dos estados brasileiros, impactando a prestação de ações assistenciais e sanitárias disponibilizadas a toda a população.

JM: Pode haver impacto nas emendas parlamentares também?

AM: Não há dúvidas disso. Esse corte é direcionado para a o Orçamento da Saúde como um todo e as emendas parlamentares específicas sobre a ampliação de ações de saúde dos municípios não constituirão exceções. Mas, é preciso acrescentar que a situação das finanças públicas municipais, para além do congelamento de emendas parlamentares, será impactada de forma negativa com a crise econômica. Isto porque, haverá queda das transferências do Fundo de Participação dos Municípios (FPM), formado por parcelas da arrecadação federal do Imposto de Renda e do Imposto sobre Produtos Industrializados. Além disso, com a crise também será verificado uma diminuição dos tributos cujo fato gerador está diretamente relacionado à atividade econômica, como a receita do Imposto sobre a Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) – de arrecadação dos governos estaduais e com repasse de 25% de seu total aos municípios – e a receita do Imposto sobre Serviços (ISS), no âmbito dos municípios. A rigor essas receitas compõem a base de cálculo da aplicação mínima legal em ações e serviços públicos de saúde nos Municípios.

JM: Qual sua avaliação sobre o futuro do SUS, visto que, aparente e gradativamente, ele tem sido preterido em relação à saúde suplementar?

AM:ÂÂ É preciso dizer que o SUS público e integral não vem sendo tratado como área prioritária do governo federal, desde o governo do Fernando Henrique Cardoso. Isso porque desde 1995 até 2014, o gasto com ações e serviços de saúde do Ministério da Saúde manteve-se praticamente o mesmo em 1,7% do PIB, enquanto o pagamento de juros da dívida correspondeu, em média, a 6,5% do PIB, nesse período. Além disso, mais recentemente, o descaso com esse SUS alcançou proporções elevadas. Recentemente, duas medidas tiveram o apoio do governo federal que acabaram por prejudicar ainda mais o seu subfinanciamento histórico. A primeira diz respeito à aprovação da Lei 13.097/2015, que permite a exploração do capital estrangeiro nos serviços de saúde, inclusive o filantrópico, por meio da permissão de aquisição das Santas Casas – instituição que basicamente é financiada pelo Estado brasileiro. A segunda medida refere-se à aprovação da Emenda Constitucional 86/2015, que modificou a base de cálculo do financiamento federal da saúde, reduzindo-o ainda mais do baixo nível de gasto que se alcançou até recentemente, 1,7% do PIB em 2014, sendo 3,9% quando se inclui os três níveis de governo. Em países com sistemas universais, esse percentual corresponde, em média, a 8,3% dos seus PIBs.

JM: Qual a projeção de impacto dessa nova base de cálculo do financiamento do SUS?

AM: A nova regra de cálculo (13,2% da Receita Corrente Líquida) aponta para uma diminuição dos valores a serem aplicados em ações e serviços públicos pelo governo federal já em 2016, em comparação ao que seria se a regra anterior – baseada na variação nominal do PIB – continuasse em vigor após 2015. Com base nessa alteração, o orçamento federal da saúde terá uma redução de R$ 9,2 bilhões. Assim, o tamanho do problema é significativo, com corte de recursos por meio do ajuste fiscal e a diminuição dos recursos por meio da EC 86. Devemos nos perguntar, a quem interessa o subfinanciamento do nosso sistema de saúde e o fortalecimento do setor privado, inclusive com a participação das empresas estrangeiras? Não temos dúvida que não interessa à maior parte da sociedade brasileira.

JM: Como preservar as políticas de saúde diante da crise econômica mundial e seu impacto no Brasil?

AM: Somos da opinião que é preciso sim um ajuste fiscal, mas de outro caráter, isto é, comprometido com a manutenção das políticas sociais de direitos e não o seu desmanche. Dito de outra forma, o ajuste não deveria priorizar a diminuição de gastos públicos sociais. Daí insistirmos que poderiam ser tomados outros caminhos.

JM: Pode explicar um pouco mais sobre estes caminhos alternativos?

Em segundo, uma medida importante a ser adotada deveria ser a rejeição da política macroeconômica, utilizada desde o governo FHC, baseada no tripé – superávit primário, metas de inflação e câmbio flutuante – que impõe à área social, em geral, e à saúde, em particular, permanentes cortes de recursos. A intenção desse governo federal atual de perseguir uma meta de cumprimento de 1,2% do PIB em 2015 para o pagamento de superávit primário leva-o a adotar a magnitude de um ajuste fiscal de redução de R$ 69,9 bilhões no Orçamento Federal.

Em terceiro lugar,  toda explicação do governo para a adoção desse ajuste apoia-se na seguinte afirmação: não temos fontes fiscais específicas e com a crise o Orçamento Federal será largamente prejudicado. Ora, é conhecido de todos que o Orçamento da Seguridade Social (OSS), formado pela saúde, previdência e assistência social, vem demonstrando superávits há vários anos. Mais recentemente, registre-se: em 2010, R$ 53,8 bilhões; em 2011, R$ 75,8 bilhões; em 2012, R$ 82,7 bilhões e, em 2013, R$ 76,2 bilhões. Grande parte desse superávit vem sendo transferido para o pagamento de juros da dívida, em respeito, como dissemos, à política de manutenção do superávit primário e corte dos gastos das políticas de direitos sociais, como a saúde.

JM:ÂÂ É possível fazer um ajuste fiscal sem cortar recursos da saúde?

AM: Sim, basta eliminar a Desvinculação das Receitas da União (DRU), que as áreas de direitos sociais não serão prejudicadas pela crise econômica. Criado em 1994 e ainda em funcionamento, a DRU é um mecanismo em que 20% das receitas da seguridade social são retiradas e destinadas ao pagamento de juros da dívida. Os recursos retirados pela DRU foram: em 2010, R$ 45,9 bilhões; em 2011, R$ 52,4 bilhões; em 2012, R$ 58,1 bilhões e, em 2013, R$ 63,4. Isso significou uma extração, em média, de cerca de 55% do saldo superavitário do OSS, a partir de 2010. Entre 1995 a 2013, a perda de recursos para a Seguridade Social com a DRU correspondeu a cerca de R$ 641 bilhões. Sabe-se que a continuação da DRU está garantida até 2015, quando possivelmente será colocada pelo governo federal a sua prorrogação, como o fez sistematicamente desde sua criação. A sociedade brasileira precisa saber disso e aí, sim, rejeitar a continuidade da DRU. Infelizmente, falta compromisso por parte do governo federal com a população brasileira.  

JM: Como enfrentar o subfinanciamento do SUS nesse contexto?

AM: Deve-se defender a mudança dessa política econômica que, em cumprimento ao superávit primário, prioriza o pagamento de juros da dívida pública, isto é, uma forma de financeirização do orçamento público. Em 2014, o Orçamento executado do Governo Federal foi de R$ 2,2 trilhões, sendo que o pagamento para juros e amortizações da dívida correspondeu a 45,1% do seu total, enquanto para a saúde foi alocado apenas 4%. Refletindo sobre essa problemática, é possível dizer que a sociedade brasileira, em geral, e o setor saúde, em particular, deveriam reivindicar uma auditoria dessa dívida, a fim de possibilitar maiores recursos disponíveis para a seguridade social (saúde, previdência e assistência social), assim como fez o Equador, de forma bastante equilibrada, com a participação de parlamentares de diversos países. Nesse país, depois dessa medida, 70% da dívida foram declarados ilegais e o governo equatoriano admitiu pagar os outros 30%, restando recursos para serem destinados às políticas sociais.

Aviso de Privacidade
Nós usamos cookies para melhorar sua experiência de navegação no portal. Ao utilizar o Portal Médico, você concorda com a política de monitoramento de cookies. Para ter mais informações sobre como isso é feito, acesse Política de cookies. Se você concorda, clique em ACEITO.